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Telegram
O Telegram foi suspenso no Brasil após suposta recusa em entregar à Polícia Federal dados sobre grupos virtuais neonazistas| Foto: Reprodução/ Pixabay

A suspensão do Telegram por determinação da Justiça, nesta quarta-feira (26), afetou milhões de pessoas e empresas que utilizam a plataforma. Pelas redes sociais, usuários relataram dificuldades para acessar o aplicativo e começaram a recorrer ao uso de serviços de VPN.

A rede foi suspensa após suposta recusa em entregar à Polícia Federal dados sobre grupos virtuais neonazistas. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que tirar o app do ar por esse motivo não resolve o problema em questão, fere o princípio constitucional da liberdade de expressão e caracteriza "censura coletiva".

"A medida obviamente não resolve o problema que busca solucionar e piora ainda mais a situação, com a possibilidade de a empresa suspender suas operações no Brasil e os criminosos continuarem atuando a partir de plataformas em outras jurisdições", diz o advogado Giuliano Miotto, presidente do Instituto Liberdade e Justiça.

Na avaliação do advogado criminalista Luiz Mantovani, diretor-executivo da Associação Brasileira de Juristas Conservadores (Abrajuc) no Rio de Janeiro, a suspensão da plataforma viola outro princípio do Direito Penal: o da intranscendência da pena, que diz que nenhuma sanção deve ultrapassar a pessoa do condenado. "No presente caso, toda a população brasileira está sendo penalizada, podendo gerar inclusive perdas financeiras para quem se utiliza do aplicativo para questões de ordem profissional", explica.

Mantovani ainda menciona que a aplicação de uma multa à empresa seria uma penalidade suficiente, sem necessidade de interromper o serviço. Além disso, ele considera que o valor de R$ 1 milhão por dia de descumprimento imposto pelo juiz é uma violação ao princípio da proporcionalidade.

O advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em censura e liberdade de expressão, avalia a suspensão como um "ato judicial isolado que não leva a nenhum lugar, nem evita nenhum crime". Segundo Marsiglia, os aplicativos são como "praças públicas" e a própria urgência do Legislativo e do Judiciário em querer regulá-los mostra sua relevância social.

"Não se pode suspender ou banir a praça pública em razão de lá se ter cometido um ilícito. Pouco importa a responsabilidade da plataforma. Punindo-a com suspensão ou banimento, todos os que lá estão se expressando licitamente também são punidos, censurados, impedidos de seguir se manifestando", explicou Marsiglia.

A regulação das redes sociais mencionada por Marsiglia vem sendo discutida no PL das Fake News, que deve ser votado pelo plenário da Câmara dos Deputados na próxima terça-feira (2), após aprovação do regime de urgência nesta semana. O assunto é prioridade para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido pelo ministro Alexandre de Moraes.

A Gazeta do Povo tentou contato com o Telegram, mas a empresa ainda não se pronunciou sobre a decisão judicial. A suspensão do Telegram vale até que a empresa responda aos pedidos feitos pela Polícia Federal.

Decisão de primeira instância

A ordem de suspensão partiu do juiz Wellington Lopes da Silva, da 1ª Vara Federal de Linhares, no Espírito Santo. Por entender que a empresa cumpriu apenas parcialmente a ordem judicial que lhe foi dirigida e não quis cooperar integralmente com a investigação em curso, além da suspensão, o juiz determinou multa de R$ 1 milhão.

Miotto afirma que uma medida dessa magnitude e alcance jamais poderia ser tomada por um juiz de primeira instância. "O Brasil caminha para um grave estado de anomia, em que qualquer juiz ou burocrata pode, ao arrepio da lei, tomar decisões que afetam milhões de pessoas e sem que haja sequer uma responsabilização posterior em face de excessos ou abusos de poder", diz.

O advogado publicista Adriano Soares da Costa concorda que a decisão é uma medida desproporcional, que vai além dos limites da competência do juiz de primeira instância. "A decisão de um juiz de primeira instância não pode ter efeitos para além da sua jurisdição e do objeto do processo ou da investigação policial sob sua competência", explica.

Soares da Costa relembra os julgamentos da ADPF 403 e da ADI 5527, no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o bloqueio do aplicativo WhatsApp, em que os ministros Rosa Weber e Edson Fachin votaram pela impossibilidade dessas medidas judiciais. Ele recorda também que "houve suspensão de decisão semelhante de juiz de primeiro grau, em liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na própria ADPF 403”.

Na liminar apontada por Soares, Lewandowski escreveu: "Ora, a suspensão do serviço do aplicativo WhatsApp, que permite a troca de mensagens instantâneas pela rede mundial de computadores, da forma abrangente como foi determinada, parece-me violar o preceito fundamental da liberdade de expressão aqui indicado, bem como a legislação de regência sobre o tema. Ademais, a extensão do bloqueio a todo o território nacional, afigura-se, quando menos, medida desproporcional ao motivo que lhe deu causa".

Em relação ao fato de a empresa não ter apresentado todos os dados solicitados pela Polícia Federal, Soares da Costa explica que "as empresas responsáveis pelo tráfego de dados de indivíduos conservam a privacidade das mensagens como princípio fundamental da sua atuação". Tal medida, segundo ele, garante a "preservação da intimidade e a liberdade de expressão e de pensamento, sobretudo em face de regimes ou políticas autoritárias".

Suspender Telegram é "censura coletiva", afirma especialista

Com a suspensão de uma plataforma usada por mais de 40 milhões de brasileiros, segundo dados da empresa de análise de dados móveis App Annie, há uma "censura coletiva", segundo o advogado Giuliano Miotto. "O juiz tomou uma decisão absurda de punir milhões de pessoas honestas que utilizam a plataforma todos os dias, consistindo em verdadeira censura coletiva”, afirma.

Para Soares da Costa, a suspensão é "mais do que censura" e significa um risco "em limitar a liberdade de expressão por meio de um poder de polícia que pode invadir conversas pessoais, retirando das pessoas a liberdade de expressar com segurança os seus pensamentos, ficando o cidadão sob o domínio do medo”.

Mantovani também vê a medida como censura e aponta que existem outras leis capazes de responsabilizar indivíduos que se excedem no uso de sua liberdade de expressão. "Se alguém criminosamente atribui a outrem um fato criminoso na Internet, deve responder por calúnia, xingamentos, responde por injúria e temos ainda a Difamação quando ofende a boa imagem do cidadão. Interromper serviços que em sua totalidade são benéficos apenas reforça a teoria que o Estado ainda é absolutamente incapaz de lidar com questões sensíveis”, diz.

Além da censura, os especialistas temem outros riscos para o Brasil com a adoção de medidas judiciais similares a essa do Telegram, como o enfraquecimento da democracia e uma afronta ao texto constitucional quanto ao direito fundamental da liberdade de expressão.

"O risco é alimentarmos ainda mais uma jurisprudência que, em nome do combate à desinformação, fake news e discurso de ódio, promove e legitima a censura. A jurisprudência sobre liberdade de expressão no Brasil se tornou hesitante e caótica desde o advento do inquérito das fake news, do STF, em 2019. Sinto que temos perdido a sensibilidade de entender que censura não se justifica jamais, não importa o motivo", opina Marsiglia.

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